Economia da floresta, protagonismo indígena e valorização dos saberes tradicionais em conversas por um futuro possível
Dando sequência às celebrações do dia da Amazônia, a Tucum se uniu ao movimento Menos 1 Lixo para organizar a Semana da Amazônia em Pé, que aconteceu entre os dias 9 e 11 de setembro. Foram três dias de trocas, partilhas, aprendizados e reflexões reunindo um time engajado na luta pela floresta e pelos povos que a habitam. O evento contou com o apoio dos parceiros do Origens Brasil, e também do Idesam (Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia), do Instituto Socioambiental (ISA) e da plataforma de negócios sustentáveis Parceiros pela Amazônia (PPA).
Divididas em três eixos temáticos, as rodas Riqueza da Floresta em Pé, Vidas Indígenas importam e Cura pela Floresta reuniram especialistas indígenas e não-indígenas entre mediadores, convidados e um público atento e participativo em conversas fundamentais sobre a potência regeneradora da floresta e os conhecimentos de quem vive nela. Uma oportunidade para conhecer e aprender sobre a rica sociobiodiversidade amazônica a partir de diferentes perspectivas sobre a necessidade de somar forças na luta pela defesa da Amazônia.
As oportunidades econômicas da floresta foram o ponto de partida do evento e contou com o diretor Estêvão Ciavatta como mediador deste primeiro encontro. Maria Leonice Tupari, presidente da Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia (AGIR), o sociólogo Ricardo Abramovay e o presidente da Associação Território Indígena do Xingu (ATIX), Ianukulá Kaiabi Suiá foram os convidados da primeira roda de conversa.
“Hoje a gente quer falar da abundância, do conhecimento das pessoas que moram na floresta. É um momento para a gente celebrar e aprender com as vozes indígenas “, foi assim que Ciavatta abriu a conversa, aproveitando para convidar Maria Leonice a apresentar a história da AGIR. “A AGIR surgiu em 2015 da necessidade de representação das mulheres indígenas do nosso estado. A gente precisava de uma voz que nos representasse na luta pelo espaço de tomada de decisões no que diz respeito ao nosso território.”
Em seu segundo mandato à frente da Associação, Leonice fala da importância de amplificar a voz das mulheres indígenas na luta por direitos e no enfrentamento pela defesa de seus territórios. E lembra que desde sua fundação, a AGIR tem desenvolvido um trabalho de valorização da força de trabalho da mulher indígena, voltado tanto para a base de suas comunidades quanto para fora delas.
Leonice dá uma amostra de sua capacidade de articulação política ao relatar a forma com que as lideranças masculinas do povo Tupari receberam o surgimento da AGIR e sua missão de fortalecer o protagonismo feminino nas lutas indígenas:
“Eu acredito que tudo é uma conquista. Eu como mulher indígena não sou muito de bater de frente com os homens, sou de mostrar pra eles que nós temos um conhecimento muito importante. E que unificando, a gente consegue avançar. “
“Nós, mulheres indígenas, somos uma força muito grande. Unificadas somos maior ainda. “
Sobre a valorização do senso de coletivo frente às causas indígenas, ela completa: “A gente precisa do coletivo. [Mostrar que] aquilo que a gente está fazendo [na associação] vai trazer benefício para nossas comunidades. A atividade das mulheres impacta diretamente na vida de todos, não só para nós mulheres, para todo o povo em si.”
Ianukulá Kaiabi citou os 25 anos da ATIX reforçando a necessidade de se discutir o tema da economia da floresta com a sociedade não-indígena, destacando a importância das comunidades indígenas no contexto de desenvolvimento econômico. Ele aponta o debate como forma de desconstruir ideias pré-concebidas sobre as lógicas de organização e produção das sociedades indígenas.
“Existe um tabu na sociedade de que os indígenas não contribuem para a economia do país. Daí vem aquela ideia [equivocada] de que os povos indígenas são empecilhos para o desenvolvimento.“
Carro-chefe na lista de produtos indígenas disponíveis no mercado não-indígena, o mel orgânico do Xingu é um exemplo de sucesso. Mas a trajetória deste que foi um dos primeiros produtos com certificado orgânico no Brasil não foi nada fácil. Ianukulá fala sobre a dificuldade em inserir produtos de origem indígena no mercado ressaltando dois grandes desafios desta empreitada: o domínio da lógica de comercialização não-indígena e o preconceito: “Além de todo o desafio de aprender a lógica do homem branco de comercialização, ainda é preciso convencer que o produto indígena tem qualidade, muitas vezes até superior em relação aos produtos convencionais.”
Ianukulá lembrou que a lógica de produção indígena respeita outros tempos e segue dinâmicas sociais próprias. “Entre as comunidades do Xingu existe um tipo de economia tradicional. O sistema de trocas permanece vivo e muitas vezes substitui o dinheiro.”
“A nossa trajetória mostra que realmente não precisamos botar a floresta deitada para gerar renda para nossas comunidades. “
>>>>VÍDEO DOS 20 ANOS DA ATIX >>>> Kamikia Kisêdje
“Para os povos da floresta, a floresta é desenvolvimento.”, sentencia o sociólogo e pesquisador Ricardo Abramovay. “Muito mais interessante na Amazônia seria pensar numa economia do cuidado. Claro que há a economia convencional, de grandes plantações criações, que é importante e que vai continuar existindo, desde que respeitem as legislações e normas ambientais. Mas a economia do cuidado é capaz de ao mesmo tempo regenerar a floresta e obter produtos capazes de se afirmarem no mercado como relevantes. “
Sobre as diferenças no compreensão de mundo entre as sociedades indígenas e não-indígenas, Abramovay ressalta o potencial em aprendizado que decorre da interação dessas diferentes maneiras de estar no mundo: “Há muito que se aprender a partir da cultura material e espiritual dos povos indígenas. A relação dos indígenas com o mundo que o cerca é de integração profunda com os animais, plantas.”
Ainda sobre a questão da diferença entre as compreensões de mundo, Estêvão Ciavatta levanta uma questão importante: o equívoco da idealização da figura do indígena. O mediador lembra do olhar enviesado e preconceituoso que muitas vezes se tem sobre o indígena que está conectado ao mundo contemporâneo, como se isso representasse o abandono de suas tradições.
Leonice Tupari responde de forma contundente à esta questão: “A sociedade não-indígena diz que ‘índio precisa viver na floresta, da caça e da pesca. E não viver na cidade, não usar roupa, não ter celular.’ Mas não é porque eu uso celular que eu deixei de ser indígena.” E continua: “Também falam que a gente tem que usar a medicina tradicional indígena e não os remédios dos brancos. Mas esquecem que quem trouxe esses medicamentos [ assim como as doenças, é bom lembrar ] para as aldeias foram os brancos, na época do contato.”
Outra questão fundamental lembrada por Abramovay diz respeito a bens e serviços que a comunidade circundante faz – ou pelo menos, devia fazer – chegar aos indígenas: infraestrutura. “Qual é a infraestrutura necessária para melhorar a capacidade dos povos de explorarem de maneira sustentável dos recursos que eles dispõem? Quando a gente pensa em infraestrutura na Amazônia, o que vêm à nossa mente? Construção de estradas para escoamento de produtos agropecuários. Ora, mas essas estradas são também vetores de desmatamento. O que precisamos é de uma infraestrutura voltada para as necessidades das pessoas que vivem na floresta. Como conexão de alta qualidade nas aldeias, melhoria no sistema de informações para circulação de pessoas, saneamento básico. “
Muita terra pra quem?
“Dizem que tem muita terra pra pouco índio, mas não pensam que se nós somos ‘poucos’ é porque a população indígena já foi dizimada aos milhões’.” Ianukulá Kaiabi Suiá
“O que há é muita terra para pouco homem branco”, comenta o mediador Estêvão Ciavatta trazendo dados sobre a taxa de ocupação de 21,25% do território por cerca de 97 mil fazendeiros no Brasil. Abramovay cita a último pesquisa do Censo Agro, para completar a informação dizendo que a proporção de propriedades localizadas na Amazônia com mais de 100 mil hectares na aumentou drasticamente.
“Sofremos invasões de nossos territórios, ameaças de garimpeiro, de grileiro, madeireiro, mineradoras, sofremos com o assassinato de nossas lideranças. E mesmo com tudo isso acontecendo, nós, mulheres indígenas estamos aí para dizer que nossas vidas importam e nossos territórios também.” Maria Leonice Tupari
“Quando se fala em muita terra pra pouco índio, normalmente não se leva em consideração que se tivesse muita gente nessa terra, seria muito difícil mantê-la com as funções ecossistêmicas que elas desempenham. É preciso desmistificar que há um grande vazio improdutivo e lembrar que a floresta não está vazia, pelo contrário, tem gente lá e gente produzindo há muito tempo: os povos da floresta.” Ricardo Abramovay
“Nossa visão é de que as Terras Indígenas assim como tudo que há dentro dela (árvores, plantas medicinais, animais, rios, etc) não são dos povos indígenas e sim, da humanidade. Diante dos fatores climáticos já comprovados pela ciência do homem branco assim como pela ciência indígena, esse [a terra] é o maior bem que temos. E [sua preservação] não beneficia somente aos povos indígenas, mas a todos. É preciso que haja uma compreensão nesse sentido para que a gente possa continuar cuidando disso tudo. ” Ianukulá Kaiabi
“A floresta não é apenas útil, as floresta e os povos que habitam e protegem essas áreas devem ser tomados como valores éticos. Toda a sociedade tem a responsabilidade de manter esses valores que estendem aos nossos filhos, netos e a todo o conjunto da espécie humana.” Ricardo Abramovay
>>>>TRAILER OFICIAL DO AMAZÔNIA SOCIEDADE SECRETA, DO ESTÊVÃO <<<
Para assistir na íntegra esta conversa basta acessar o canal do Menos 1 Lixo ou clicar aqui: http://bit.ly/semanaamazoniaempe No próximo post do blog da Tucum a gente conta como foi o segundo e o terceiro dia de conversa da Semana Amazônia em Pé.