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Arte indígena, resistência ancestral
Arte indígena, resistência ancestral

Arte indígena, resistência ancestral

Um paralelo entre a bioeconomia, os diversos modos de existir e produzir dos povos indígenas e a quebra do paradigma do mercado das artes a partir do lançamento da flecha da AIC – Arte Indígena Contemporânea


– por Amanda Santana*

A Amazônia nos faz ser o país com a maior sociobiodiversidade do planeta. Uma riqueza imensurável que se mantém viva e pulsante graças às relações simétricas que os povos que nela habitam estabelecem com toda sorte de seres-animais, seres-insetos, seres-plantas, seres-espíritos. Essas relações são ancestrais, regidas por conhecimentos tradicionais. À custa de muito sangue seguem vivos e resilientes, sendo transmitido às incontáveis gerações, resistindo à séculos de violência contra corpos-territórios originários dessa terra a qual chamamos de Brasil.

Temos o privilégio de compartilhar o mesmo tempo e espaço com essas diversas culturas, porém nossa sociedade ainda precisa descobrir verdadeiramente essas múltiplas narrativas e realidades.
Atualmente são mais de 300 povos indígenas vivendo no país, uma diversidade de mundos que têm em comum a filosofia do bem viver, baseada na reciprocidade e na conexão profunda com a Terra. Povos que, entre muitas coisas, compartilham a busca pela beleza e perfeição em tudo que vêm de suas mãos: da roça, passando pelos objetos utilitários até o cuidar de uma criança, todos estes saberes exigem um rigor estético que os proverá de força e beleza para continuarem vivos. Ser belo também é uma forma de resistência.

Boa parte dos brasileiros ainda tem uma imagem folclórica dos indígenas, uma visão imposta pela colonização que continua a ser ensinada nas escolas. Um projeto político muito bem arquitetado que perpetua estereótipos, reforça preconceitos e afasta o povo brasileiro dos parentes indígenas. E esse é sem dúvidas o maior desafio para a conservação da Amazônia.

A Arte sempre foi e continua sendo uma das grandes estratégias de re-existência. Desde os primeiros contatos com os invasores a estética e produção material nativa é usada para estabelecer relações com os não-indígenas, como troca ou presente, esses objetos carregam o complexo e rico mundo de um povo. A partir daí é estabelecida uma relação que não se finda.

Atualmente, os moitará, como as trocas são chamadas por alguns povos do Alto Xingu, continuam sendo parte importante na economia indígena. Seja entre parentes de aldeias, de cidades próximas e até pela internet através das redes sociais ou sites próprios ou usando plataformas de marketplaces, as trocas ganham cada vez mais formas para acontecerem.

Ao usar um adorno tradicional ou decorar sua casa com uma cestaria indígena você estabelece uma conexão com esse princípio de beleza e força ancestral, além de contribuir diretamente com a manutenção desses conhecimentos.

Não se espante, afinal, se os conhecimentos tradicionais trouxeram os indígenas vivos até hoje foi porque estes povos sempre foram sabidos em pegar o que acham de bom em outras sociedades para usar a serviço da sua. Assim é com a internet, através principalmente das redes sociais onde indígenas demarcam as telas com pautas diversas. São comunicadores/influenciadores indígenas: ativistas, jornalistas, modelos, humoristas e estilistas, cineastas, fotógrafos, escritores que têm em comum a vontade mostram que lugar de indígena é onde e como ele quiser, e que habitar as esferas digitais por exemplo não os tira nem os afasta de sua ancestralidade.

Ancestralidade que compartilham com muito respeito e orgulho. Quando suas obras são apreciadas e adquiridas por outras sociedades, mais do que uma relação comercial, o que está posto é também o reconhecimento da identidade e beleza de seu povo. O que chamamos de arte é algo que está presente no cotidiano da aldeia, é o saber-fazer.

Segundo a doutora em Antropologia Nelly Varin Mema Duarte Marubo, o saber-fazer é justamente o materializar destes conhecimentos. O sabedor-fazedor, ou artista, cria no presente a garantia de seu futuro, enquanto mantém vivo o legado ancestral de seu povo. É no presente, através da circulação desses conhecimentos dentro dos territórios e corpos que os mais jovens podem acessar, observar e absorver os conhecimentos tradicionais para tão logo se tornarem sabedores-fazedores, artistas da própria re-existência.

Ao longo de tempos permeados por ideias pré-concebidas e excludentes em relação aos povos originários, a arte indígena foi subvalorizada, vista com algo menor e rudimentar, o que dificulta o acesso dos brasileiros às suas criações. Esta ideia vem sendo aos poucos transformada por um crescente movimento que vêm demarcando novos espaços de criação, levando suas múltiplas narrativas para museus, performances, cinemas, palcos, passarelas feiras de design, moda, música e literatura.

Um dos marcos desta guinada foi a 34ª Bienal de São Paulo, realizada em outubro de 2021. A edição, considerada histórica pela participação e atuação curatorial de diversos artistas indígenas nos diferentes territórios da mostra, foi palco do lançamento ao mundo da flecha da AIC – Arte Indígena Contemporânea. Liderado pelo artista e curador Jaider Esbell, o movimento artivista na Bienal contou com obras de artistas como Daiara Tukano, Gustavo Caboco, Uýra, Sueli Maxakali, entre outros. Infelizmente Jaider veio a falecer durante a Bienal, em novembro, deixando um legado imenso. Suas reflexões servem como importante norte tanto para a cultura nacional quanto para o movimento indígena, no que diz respeito ao entendimento da arte para além da presença, mas como conceito.

Performance de Jaider Esbell na entrada da exposição (Foto: Paula Berbert e Daniel Jabra / Reprodução)


“Hoje sou artista mais do que sou Macuxi. Não tive escolha. Cresci ouvindo tiros dos fazendeiros nas aldeias. Fui criado indo à igreja católica, participando de movimento de base. Falando uma língua que não é a do meu povo. Tive que fazer um trabalho espiritual xamanístico para imaginar o que era ser Macuxi antes da colonização. Para poder ser um artista indígena de verdade. Não apenas um artista que, por acaso, é de origem indígena. Um mero artista brasileiro, digamos assim, interessado em povos indígenas.” Jaider Esbell, Makunaimã – O Mito Através do tempo (2020, Ed. Elefante)

Para desenvolver seus trabalhos, Jaider acessava conhecimentos xamânicos, colocando sua arte a serviço da AIC, no sentido de que sua arte era feita para os seus e não para atender a um mercado de arte sedento pelo exótico. Arte indígena não tem nada de exótica, muito pelo contrário.

Fora das galerias e museus a re-existência é feita com urucum, além de tinta de jenipapo e carvão, como o belo Projeto Menire, iniciativa das mulheres Kayapó-Xikrin, Terra Indígena Xikrin do Bacajá, perto de Altamira-PA. Movidas pelo desejo de autonomia, desde 2014, as menire (mulheres) vêm desenvolvendo trabalhos de pintura em tecido. Mas foi durante a pandemia que elas se estruturaram para costurar máscaras de proteção com tecidos pintados à mão com grafismos de seu povo. Atualmente comercializam em diversos formatos seus grafismos que tradicionalmente vestem e enfeitam suas peles na vida social indígena. O projeto teve início com oito mulheres da Aldeia Prindjam e hoje conta com a participação de mais de 180 artistas espalhadas pelas 28 aldeias da Terra Indígena.

É interessante observar, que no caso das menire, a animação das primeiras mulheres, o orgulho em estar sabendo-fazendo belíssimos produtos que são apreciados por nós, não-indígenas, foi a fagulha que acendeu a chama da autoestima e autonomia gerada pelo sucesso da iniciativa das pinturas. Pinturas que fazem parte de um vasto repertório de grafismos que vão sendo relembrados, reinventados a cada tela. Ao pintar, aquela sabedora-fazedora xikrin compartilha histórias de tempos antigos para acessar a lembrança sobre um determinado grafismo que sua tia uma vez lhe contara, num movimento fluido e coerente com a busca pelo bem viver.

Valorizar e reconhecer os conhecimentos que estes povos carregam é compreender que eles prestam incontáveis serviços à humanidade e sem eles não existe futuro. A ABEX- Associação Bebô Xikrin do Bacajá, que representa a iniciativa das menire, faz parte do Origens Brasil, rede pioneira em promover negócios éticos e justos monitorando de forma transparente os impactos que essas relações geram. Através da rede Origens Brasil, empresas, comunidades tradicionais e instituições de apoio buscam soluções para mostrar ao mundo que é possível manter a Amazônia Viva, se estivermos ao lado de seus guardiões. É com muito orgulho que a Tucum Brasil faz parte desta rede, tecendo pontes para um mundo cada vez mais responsável e possível.

As culturas só sobrevivem se estiverem vivas e pulsantes, as culturas indígenas pulsam no correr dos rios, no tramar da fibra de tucum, no tecer de biojoias, no plantio da mandioca, no pintar dos corpos, no descansar na rede, na convivência harmoniosa com os seres visíveis e invisíveis. É nesse fluxo que os sabedores-fazedores mantêm a Amazônia de pé e para que ela siga viva é imperativo que estes povos tenham seus direitos assegurados.

O futuro é indígena!

*Amanda Santana é indigenista com atuação junto a diferentes povos indígenas e grupos produtores tradicionais há mais de dez anos. Também é sócia-fundadora da Tucum Brasil, o primeiro Marketplace das artes indígenas do país e negócio social voltado à valorização e estruturação das cadeias produtivas do artesanato desenvolvido por sociedades originárias do Brasil.

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