Durante a II Marcha das Mulheres Indígenas que aconteceu em setembro em Brasília, mais de cinco mil mulheres de diferentes povos fizeram da Funarte um território comum na luta por direitos. O acampamento era o epicentro da mobilização da Marcha e palco para diversos e potentes encontros. Neste contexto surge a performance “Corpo-território, cabeça de bicho”, idealizada pela atriz Lian Gaia.
O que era para ser entrevista virou depoimento. Assim, convidamos Gaia para compartilhar a concepção, a produção e o que reverberou desta prática de ares rituais performada em uma Brasília intensa e imensa. No texto abaixo, a artista conta como foi o processo de improvisação com outras artistas indígenas, da emoção de ser acolhida pelas lideranças e como o viés de denúncia pode dar contorno à expressão artística e à vida.
“Ventava a cabeça bicho que balançava junta ao corpo enlameado/terroso/barroso/fértil/sangrento/penoso/raivoso”
Essa performance surgiu depois de um sonho que eu tive. Sonhei que o meu corpo era enorme, como se fosse a terra. Tinha uma cor avermelhada forte, de lama, de barro. Apesar do corpo pesado, minha cabeça era leve, coberta de penas e se movia suavemente.

Acordei com essa sensação muito vívida e dividi com minhas parentas Barbara Matias e Rebeca Menezes Kariri. Pensei em fazer alguma coisa a partir disso, tentar reproduzir aquela sensação e de alguma forma, dar corpo às nossas denúncias. De imediato elas toparam.
A gente vinha vivendo muitas coisas juntas naqueles dias de Brasília e de Brasil. Os assassinatos de duas meninas indígenas recentemente tinha mexido muito com a gente. Ver a força das mulheres ali presentes, mulheres de várias etnias, mulheres em retomada…isso tudo estava em mim, em todas nós. Decidi não pedir pauta no palco principal do acampamento, onde aconteciam as plenárias e demais apresentações. Entendi que não era coisa a ser apresentada, era para ser sentida, expressada e realizada. A intenção era vivenciar aquilo dentro daquele território poderoso que era o acampamento.

Conversando com a Julie Dorrico, parenta Macuxi, ela sugeriu: “Por que vocês não fazem [a performance] naquela estrutura de bambu vazia?” Assim ficou resolvido que o cenário seria ali. Pegamos o barro do chão de Brasília, ali mesmo do acampamento, uma terra avermelhada. Adicionamos urucum, um pouco de água e começamos a misturar aquela massa vermelha até virar uma tinta bem grossa. E assim a gente começou a manchar o corpo com a mistura, limpar o corpo com essa terra. Era uma sensação de banho, de lavar.
A gente não sabia como fazer com o cabelo, tinha a coisa das penas que eu trouxe de uma viagem ao Maranhão, quando visitei a Terra Indígena Arariboia, território Guajajara. Eu sabia que um dia elas seriam usadas e acabei levando pra Brasília. Recebemos a ajuda luxuosa da Rebeca Menezes, que começou a espalhar a mistura pelos nossos cabelos, enquanto ia arrumando as penas de forma totalmente intuitiva. Eu tinha conversado com uma parenta que é uma liderança, a Idiane Crudza e ela topou dar voz à performance. E ela não só cantou, mas tocou o maracá, fumou seu cachimbo e trouxe com ela toda a energia do povo Kariri-xocó. Nos sentimos abençoadas ali, foi um ritual.


Costumo dizer que o corpo não tem paz. O corpo feminino, o corpo indígena não tem paz. E esse trabalho é um protesto, pede respeito aos corpos. A performance em si é também uma afronta, uma flechada bem no peito no machismo enquanto estrutura opressora. Uma performance nua, de peito de fora, mostrando o que está dentro.
Uma coisa que me marcou é que quando a gente tentou tirar a terra do corpo, doeu. Arrancar aquela terra dura da pele doía, cada pedacinho, doía. Uma reação física do que a gente tinha vivenciado, direto no corpo, com terra grudada nos pelos, nos poros.
A performance é uma ação onde a fala não é necessariamente o recurso. O movimento, o ato, o corpo é o recurso principal. Eu sinto que alguma coisa mudou em mim depois dessa performance. Me sinto mais corajosa. Procurei auxílio jurídico do comitê presente na mobilização para relatar um abuso que eu tinha sofrido. Fui aconselhada a pedir medida protetiva e a primeira coisa que fiz ao chegar no Rio de Janeiro foi registrar essa queixa. Finalmente tive coragem para denunciar um agressor, um cara que abusou, assediou e perseguiu o meu corpo e que faz isso com outras mulheres. Essa performance me fortaleceu, me proporcionou um lugar muito significativo. Uma cura.

Fotos: Patrick Raynaud.
Lian Gaia é atriz, artista visual e performancer. Formada em Psicologia, Gaia tem suas raízes tanto na Baixada Fluminense onde nasceu, quanto na Amazônia e no Nordeste do Brasil, territórios originais de sua família. Atua, produz e colabora com diversos coletivos artísticos e vivencia seu processo de retomada identitária enquanto indígena do povo Kariri da Paraíba.