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Pela ponta dos dedos: a continuidade da memória ancestral do Vale do Javari
Pela ponta dos dedos: a continuidade da memória ancestral do Vale do Javari

Pela ponta dos dedos: a continuidade da memória ancestral do Vale do Javari

Amanda Santana, diretora criativa e fundadora da TUCUM abre seu diário de campo e conta como foi passar quatro dias na Terra Indígena Vale do Javari ministrando oficinas de estruturação da cadeia produtiva do artesanato junto a mais de 80 artesãs indígenas.

Em outubro de 2021, a equipe de relações com comunidades da TUCUM, à convite da UNIVAJA e com o apoio da Nia Tero, esteve em Atalaia do Norte (AM) para realizar uma oficina junto às artesãs da região do Javari. O objetivo principal era fortalecer a cadeia produtiva do artesanato da UNIVAJA- UNIÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO VALE DO JAVARI, iniciativa indígena criada para institucionalizar a aliança entre os povos tradicionais na proteção da Terra Indígena Vale do Javari.

CONTEXTO

A T.I. Vale do Javari é a segunda maior do Brasil e nela vivem os povos Matis, Mayoruna-Matsé, Kanamari, Kulina Pano, Korubo (de recente contato). É também uma das regiões onde se encontra a maior quantidade de referências de povos indígenas isolados do planeta. Chamamos de isolados os grupos que adotaram o isolamento como estratégia de sobrevivência às invasões e violências advindas do processo de colonização de nosso continente. 

Desde o final do séc. XIX a região é intensamente explorada. Ainda que com a demarcação de terras a intensidade das atividades de exploração e conflitos tenha diminuído, ações ilícitas e predatórias como pesca e caça comercial, garimpo, narcotráfico e atividades madeireiras perpetuam o ciclo de ameaça à vida dos povos que vivem no Javari,  principalmente os isolados e os de recente contato. Além das pressões externas, os indígenas do Javari sofrem com atendimento de saúde precário e enfrentam persistentes epidemias de hepatites, malária, tuberculose entre outras doenças infectocontagiosas.

Dentro desse contexto desafiador, nossa equipe formada por mim, pela indigenista Janaina de Oliveira e pela antropóloga Nelly Dollis, do povo Marubo, realizou um encontro com 80 artesãs, gestores e comunicadores indígenas dos povos Matis, Mayoruna, Marubo e Kanamari. Nem todas as pessoas tinham domínio do português e por conta disso toda a oficina foi traduzida na língua original de cada povo. 

DIA 1

Timi Matis durante a roda de conversas contando sobre produção da Zarabata, arma de caça tradicional de seu povo.

Uma grande roda marcou a abertura dos trabalhos e apesar de estarmos num auditório, sentamos no chão para ouvir a história de cada um dos presentes. A cada fala um rico mosaico de narrativas ia se formando, transformando aquele primeiro dia em um momento único e especial. Depoimentos comoventes partiram principalmente dos mais velhos, que contaram sobre o histórico de tentativas frustradas de apoio à produção de artesanato. Com muito respeito e assertividade, os povos presentes lembraram dos equívocos cometidos em experiências anteriores voltadas ao artesanato. Ao ouvi-los, compreendemos de imediato a certa tensão e desconfiança que pairava sobre a nossa chegada. 

DIA 2

Nelly traduz para a língua marubo a apresentação do mercado da cadeia do artesanato no Brasil.

O segundo dia foi dedicado a apresentar o trabalho da TUCUM e algumas análises sobre o mercado do artesanato no Brasil. Apuramos que, até o momento da oficina, a única perspectiva de venda que as artesãs tinham era local, ou seja, voltada a um mercado que pouco valoriza suas artes e conhecimentos, insistindo em pagar o menor preço possível pelo produto graças ao preconceito em relação ao artesanato tradicional. Ouvir os relatos de artesãs que frequentemente recebem a oferta de roupas velhas em troca de suas criações foi muito impactante, pois demonstra como acontece na prática a desvalorização não somente de seus produtos, mas de toda uma cadeia de saberes ancestrais e suas guardiãs.

O que a experiência da TUCUM e a troca com outras organizações indígenas e não-indígenas parceiras nos mostram é que o panorama do mercado das artes indígenas é muito promissor, principalmente quando os produtos carregam com eles as histórias e os impactos que geram na vida de quem os faz. Apresentar essa perspectiva, de que existem pessoas que enxergam e valorizam o trabalho e conhecimento feito pelas pontas de seus dedos mudou a energia das artesãs e diluiu a desconfiança inicial. A cada dia de oficina mais e mais artesanatos eram trazidos para o auditório da UNIVAJA, formando uma grande exposição de saberes tradicionais materializados em artes.

DIA 3

Talita, Adelina e Nelly trabalhando juntas na construção da lista de produtos Marubo.

No terceiro dia, colocamos as mãos na massa. Com assessoria da TUCUM, cada povo listou seus principais produtos em cartazes que depois foram colados nas paredes. A partir dessa dinâmica, todos os presentes puderam visualizar a imensa diversidade e quantidade de produtos que as artesãs criam com as mãos. Ver aquele acervo de produtos feitos manualmente compondo uma grande galeria foi um momento de muita emoção O sentimento de orgulho presente ao longo deste encontro é algo que empodera e eleva a auto-estima de artesãs que estavam desmotivadas, sem perspectivas de reconhecimento de suas artes. Além disso, renova nosso propósito na missão de fortalecer e contribuir com o trabalho incrível destas mulheres e demais artistas e artesãos que são os guardiões de modos de fazer extremamente sofisticados e únicos.

Nelly Dolly apresenta para seus parentes sua dissertação sobre a arte das mulheres Marubo.

A oportunidade de contar com a antropóloga Nelly Dollis como colaboradora da TUCUM na realização desta oficina nos permitiu ampliar o horizonte sobre a importância dos fazeres manuais. Antes de ir à campo, Nelly, ou Varin Mema como é chamada por seus parentes Marubo, compartilhou conosco sua pesquisa intitulada NOKẼ MEVI REVÕSHO SHOVIMA AWE ‘O QUE É TRANSFORMADO PELAS PONTAS DAS NOSSAS MÃOS’.  

A dissertação de Nelly vinculada à sua pesquisa de mestrado pelo PPGAS – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ, 2018) apresenta os relatos de sete mulheres Marubo que vivem às margens do rio Curuçá. Estas mulheres são as principais inspirações para a pesquisa de Nelly sobre a importância do trabalho manual, onde enfatiza os conhecimentos tradicionais para a continuidade da memória que cada artesã traz dos seus ascendentes clânicos. Segundo as protagonistas da pesquisa de Nelly, ‘o conhecimento que a mão faz existir, materializa, conhecimento que se move sempre de fora para dentro e vice-versa, e que faz crescer a pessoa.’

Uma grande honra poder presenciar esse momento importante para as mulheres Marubo que pela primeira vez têm uma delas como pesquisadora registrando e contando suas histórias. Um feito inédito para a sociedade Marubo, onde não é costume ver mulheres atuando fora da esfera doméstica.

Co-criação da tabele de preços com as artesãs Mayoruna.

Fechamos o terceiro dia elaborando a precificação de cada item das listas de produtos dos quatro povos que participaram da oficina.

Estabelecer uma lógica entre valor e preço pode ser extremamente exaustivo, pois são muitas as variáveis a serem avaliadas ao longo do processo. Neste campo, esta dinâmica exigiu das artesãs e demais participantes pensar minuciosamente em todas as etapas de produção, desde a coleta e o beneficiamento até a criação, considerando o valor cultural de cada produto. Um dia intenso que ajudou a clarear ainda mais os processos de gestão e de desenvolvimento do negócio comunitário do artesanato a partir da perspectiva das artesãs do Vale do Javari.

Tepí Matis, foi um dos escolhidos por seu povo para ser o responsável pela organização e gestão dos pedidos.

DIA 4

No quarto e último dia, realizamos a atividade mais esperada por todos: a feira de vendas. O auditório estava animado e muito bonito, com tantas artes expostas e artistas dispostos a apresentar suas criações.  Cada artesã ou família organizou sua “loja” e para acompanhar a atividade, foram escolhidos dois representantes de cada povo, responsáveis por anotar os pedidos de cada artesã. Além das dinâmicas de gestão e organização, nessa atividade aproveitamos para ressaltar aspectos importantes sobre acabamento, limpeza, apresentação e potencial de venda dos produtos.

 

Já faz quase uma década que atuo como curadora da TUCUM e até hoje sinto um frio na barriga quando chega o momento da feira. É um momento muito especial, de interação mais íntima e próxima de cada criador, olhar de perto cada detalhe, ouvir e aprender sobre os processos envolvidos.

A senhora Tupá Mayoruna trouxe urucum e me convidou para receber sua pintura <3

 

Quando as oficinas acontecem na aldeia, esta última etapa costuma acontecer nas casas ou quintais de cada família, fortalecendo ainda mais os vínculos concedidos por cada artesã ao longo dos dias de trabalho. É desta forma que muitas das parcerias e amizades foram construídas ao longo destes quase dez anos de TUCUM. Sempre com um intérprete me acompanhando, as conversas sobre os diferentes modos de fazer e particularidades das peças me empolgavam, a vontade era de comprar tudo! Imaginar quais produtos podem ter maior potencial de aceitação na nossa plataforma é um fator fundamental que considero na hora de escolher os produtos e sempre compartilho essas impressões com as artistas.

Artesãs Matis organizam sua loja para a exposição de vendas.

A partir das tabelas de preços de cada povo criadas de forma conjunta no dia anterior, os valores já estavam estabelecidos na hora da venda. Após a seleção das peças que farão parte da plataforma, realizamos o pagamento. Acompanhada por todos com muita atenção, esta etapa da oficina é um momento de ressaltar a importância da transparência na gestão dos recursos.

Estamos muito empolgados com o lançamento da curadoria: JAVARI- PELAS PONTAS DOS DEDOS e não víamos a hora de partilhar com vocês este momento. Acreditamos que levar a arte do Javari pro mundo é levar o encantamento, a força e a ancestralidade dos povos do Javari materializados por suas próprias mãos. Mostrar essas belezas para o mundo é uma maneira de atrair os olhares e aproximar aliados como você para essa região de tríplice fronteira onde atividades ilícitas e ilegais pressionam territórios-corpos, numa tentativa de apagar e destruir sociedades que ali vivem há centenas de anos. Estas populações guardiãs mantêm viva debaixo de seus pés suas florestas-casas e bravamente seguem re-existindo às constantes ameaças e ataques contra suas vidas.

Agradecemos imensamente a toda a equipe da UNIVAJA, em especial às lideranças Beto e Paulo Marubo, pela confiança no trabalho da TUCUM. Não posso deixar de agradecer a cada artesã e sabedora com quem tive a honra de passar valiosos dias de oficina, sempre atentas, entusiasmadas e generosas com a nossa troca. Saio do Vale do Javari ainda mais impactada com a sabedoria de cada uma delas.

Esse foi só o início de uma parceria que vai ser fortalecida à medida que novos pedidos forem feitos e novas oficinas realizadas dentro das aldeias, um pedido que já nos adiantou o coordenador geral da UNIJAVA, Paulo Marubo.

Agora é com você! Seja parte desse impacto, escolha sua joia, bolsa, rede ou cestaria feitos pelas pontas dos dedos das mulheres do Vale do Javari e fortaleça a luta dos povos indígenas do Brasil.

https://www.tucumbrasil.com/
Expedição Tucum - Jamaraquá: o encontro do Tapajós com a Floresta Amazônica

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